Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Demétrio Magnoli
Descrição de chapéu Venezuela

Nada de anormal

Lula cava trincheira de proteção ao redor de Maduro pelo mesmo motivo que mantém solidariedade à guerra imperial na Ucrânia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Menos de 48 horas depois da descarada fraude eleitoral, Lula declarou que "não tem nada de anormal" na Venezuela. Verdade: a corrupção dos processos eleitorais é o normal no regime "cívico-militar-policial" de Maduro. Dessa vez, contudo, o ditador companheiro ultrapassou os limites aceitáveis por quase todos –mas não, claro, por Lula. Também não há "nada de anormal" nas sentenças do presidente brasileiro, que dissolveu cedo demais a farsa diplomática montada por Celso Amorim.

"Mostrem as atas!" —exigiu a oposição, secundada pelos governos democráticos com um mínimo de vergonha na cara. O governo do Brasil somou-se ao pedido, embora aos murmúrios, em posição contrastante à do PT, que correu para o abraço com o ditador. Nos amplos círculos do jornalismo oficialista, disseminou-se a tese benevolente de que a posição brasileira equilibrava prudência e firmeza. Lula desfez o equívoco, antecipando um roteiro previsível.

O presidente Lula, durante evento no Rio de Janeiro - Pablo Porciuncula - 24.jul.24/AFP

"Como vai resolver essa briga? Apresenta a ata. Se a ata tiver dúvida, a oposição entra com recurso e vai esperar na Justiça andar o processo. E aí vai ter uma decisão, que a gente tem que acatar." Atas eleitorais são documentos cuja autenticidade é facilmente verificável por peritos. Mas Lula prefere transferir a prerrogativa aos juízes amestrados da ditadura, os mesmos que encarceram opositores ou vetam suas candidaturas. Qualquer ata falsificada serve —eis a mensagem que, sem corar, Lula enviou a Maduro.

São atos, além de palavras. A abstenção brasileira impediu a aprovação de uma resolução da OEA que solicitava não só a apresentação das célebres atas mas, sobretudo, a análise delas por observadores independentes. O veto tácito, mais um serviço prestado pelo governo Lula ao regime venezuelano, oferece amparo ao plano de Maduro de confiar o veredito eleitoral a seus juízes de estimação.

A valsa do apoio ao tirano desmoraliza a denúncia lulista do golpismo de Bolsonaro, desencanta os eleitores atraídos pela frente democrática no Brasil e divide até mesmo as bancadas do PT e do PSOL. Por que Lula não segue o exemplo do chileno Boric e denuncia o golpe contra a soberania popular na Venezuela?

Um tanto envergonhados, os áulicos lulistas na imprensa recorrem à proverbial "casca de banana" que, rotineiramente, provocaria "escorregões" de seu ídolo distraído.

Contudo, bananas na calçada não pertencem ao domínio da análise política. Lula move-se por um cálculo de prioridades: em nome de uma razão estratégica, aceita o pesado desgaste doméstico provocado pelo abraço em Maduro.

No passado, a aliança do lulismo com o regime chavista derivava da parceria ideológica com a ditadura castrista cubana. O cenário mudou desde a inauguração de Lula 3, em meio à tormenta que desloca o edifício da ordem mundial. A política externa do atual governo, conduzida mais por Celso Amorim que por Mauro Vieira, emana do dogma "anti-imperialista" e busca alinhar o Brasil ao "Sul Global", rótulo quimérico aplicado ao eixo China/Rússia.

Lula cava uma trincheira de proteção ao redor de Maduro pelo mesmo motivo que mantém solidariedade à guerra imperial russa na Ucrânia. Ao contrário de Cuba, que é economicamente irrelevante, a Venezuela possui as maiores reservas de petróleo do mundo. A ditadura venezuelana estreitou laços com a China, sua maior parceira comercial, e com a Rússia, principal fornecedora de material militar, transformando-se no mais importante ponto de apoio geopolítico das duas potências na América Latina. É nessa moldura que Lula organiza suas prioridades.

A revista The Economist depositou suas esperanças no passo inicial da valsa lulista, sugerindo que, depois de pedir a exibição das atas, o Brasil articule-se com o México e a Colômbia para endurecer o jogo diplomático com Maduro. Não acontecerá: para Lula, democracia é um bem supérfluo.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.